“Admiro a ousadia dos técnicos atuais do urbanismo que, quando aplicam esta ciência a uma cidade, consideram antes de tudo a aparência das coisas, como se a consideração dos habitantes que formam a cidade não se impusesse previamente. É através destes que a cidade precisa ser vista, ao invés de ser observada simplesmente do ponto de vista dos espaços cheios e vazios que ela forma sobre o solo. Para compreender uma cidade, é preciso conhecer seus habitantes; uma cidade é um conjunto de almas.” Marcel Poète (1)
Introdução
As críticas de Jane Jacobs (2), publicadas em 1961, em seu livro ‘Morte e Vida de grandes cidades’ (do original The Death and Life of Great American Cities),
ao planejamento urbano ‘moderno ortodoxo’ do século XX, permanecem tão
contemporâneas e cheias de força ainda neste início de século XXI. Tanto
são atuais, que a leitura desse livro deveria tornar-se obrigatória
àqueles que enveredam no campo do planejamento e gestão de cidades,
mesmo que suas tiradas, vistas como ofensiva, dividam as opiniões de
renomados intelectuais - acirrando ânimos e gerando polêmicas.
Os planos e práticas modernistas, baseadas nos
princípios do mestre franco suíço Le Corbusier (3), das quais Jacobs
tornou-se ferrenha combatente ganharam grandes dimensões na criação de
cidades ex nihilo, ou seja, criadas a partir do nada, da estaca zero.
Cidades criadas ex nihilo são numerosas,
sobretudo em países novos, e muitas foram idealizadas para serem
capitais, como Ottawa, capital do Canadá, e Pretória, capital da África
do Sul (ambas no século XIX); Washington (Estados Unidos, 1800),
Canberra (Austrália, 1927), Nova Delhi, capital da Índia, e Ankara,
capital da Turquia (ambas no inicio do século XX); Islamabad (Paquistão,
1959), Brasília (Brasil, 1960). Outras foram planejadas para serem
capitais de Estados federados, como Madison, Adelaide, Belo Horizonte e
La Plata no século XIX. No século XX: Goiânia (1930) e Palmas (1990),
capitais dos estados brasileiros de Goiás e Tocantins, respectivamente, e
Chandigarh (1953), capital do estado indiano de Penjab, projetada por
Le Corbusier. (4)
A cidade modernista ‘Corbusiana’ pode ser descrita
pelos seguintes tópicos: classificação das funções urbanas,
multiplicação dos espaços verdes, criação de protótipos funcionais,
racionalização do habitat coletivo. Le Corbusier sempre depositou
uma certeza na capacidade de transformar a cidade e o habitat em
máquina. E utilizou princípios geométricos como fundamentação da cidade
moderna. É a partir dessa crença que ele afirma:
“A geometria é o meio que nos propiciamos para perceber à nossa volta e para nos exprimir. A geometria é a base. É também o suporte material dos símbolos que significam a perfeição, o divino. Ela nos traz as elevadas satisfações da matemática. A máquina procede da geometria. Toda a época contemporânea é portanto eminentemente de geometria; seu sonho, ela orienta para as alegrias da geometria. As artes e o pensamento modernos depois de um século de análise buscam mais além do fato acidental, e a geometria os conduz a uma ordem matemática, atitude cada vez mais generalizada.” (5)
Jacobs não está sozinha nas denúncias de práticas
excessivamente racionalistas do espaço urbano. Christopher Alexander
também foi eloqüente, quanto a esse ponto, no artigo intitulado “A
cidade não é uma árvore”, em que ele define claramente 'cidades
naturais' como aquelas que surgiram e se desenvolveram, mais ou menos de
forma espontânea, ao longo de muitos e muitos anos; e 'cidades
artificiais' as que foram deliberadamente criadas por projetistas e
planejadores. Para Alexander,
“Siena, Liverpool, Kyoto e Manhattan são
exemplos de 'cidades naturais'. Levittown, Chandigarh e as cidades novas
inglesas são exemplos de 'cidades artificiais'. Hoje, se reconhece –
cada vez mais amplamente –, que falta algum ingrediente essencial nas
cidades artificiais. Quando comparadas com cidades antigas, que
adquiriram a pátina da vida, nossas tentativas modernas de criar cidades
artificialmente são, sob um ponto de vista humano, inteiramente mal
sucedidas.” (6)
Os discípulos de Le Corbusier aprenderam bem a
lição da geometria e o resultado pode ser observado na recém-criada
cidade brasileira de Palmas, Capital do Estado do Tocantins, resultado
da separação da parte Norte do Estado de Goiás, em 1989.
Em agosto de 1993, a Revista Veja publicava: ‘A
última fronteira – Setenta mil brasileiros vivem a aventura de Palmas, a
capital da poeira e das oportunidades’. Vejamos um trecho do que então
foi escrito:
“No fim do século passado, foi Belo Horizonte, hoje com dois milhões de habitantes. Depois, no final dos anos 30, veio Goiânia, ocupada agora por 1 milhão de pessoas. Nos anos 50, Brasília surgiu no Planalto Central como a maior aventura desse tipo. Neste momento, toda a febre envolvida no nascimento de um Estado e de uma capital está concentrada no cerrado do Tocantins, em Palmas mais precisamente.” (7)
O Plano Urbanístico de Palmas possui
características claramente modernistas, inspiradas no Plano Piloto de
Brasília e Goiânia, ainda que seus planejadores, Luiz Fernando Cruvinel
Teixeira (autor) e Walfredo Antunes de Oliveira Filho (co-autor), não o
admitam. Hoje, após vinte anos da sua inauguração, com uma população de
184.010 habitantes (8), a cidade planejada amarga com a falta de
vitalidade urbana.
Como se disse, este artigo é um compêndio das
principais críticas feitas por Jane Jacobs às cidades modernistas,
relacionadas aqui à cidade de Palmas, um exemplo peculiar das práticas
racionalistas no planejamento e desenho urbano de cidades novas.
Serão abordados alguns tópicos, como: a rua, o uso
das calçadas, as faixas para pedestres, o sistema de comunicação
visual, as quadras, os vazios urbanos, a questão dos muros, as praças
públicas, a segregação sócio-espacial e a paisagem natural.
A rua urbana
Jacobs destaca três qualidades principais que uma
rua urbana deve ter para garantir a vitalidade e a segurança do cidadão.
Primeiramente, ela deve estabelecer demarcação nítida entre o espaço
público e o espaço privado. Espaço público e privado não devem, de modo
algum, confundir-se, como ocorre entre subúrbios e conjuntos
habitacionais. No desenho urbano das ruas de Palmas, espaços públicos e
privados foram muito bem definidos pelas regras urbanísticas de um
traçado convictamente ortogonal.
Em segundo lugar há necessidade de ‘olhos para
vigiar a rua’, aos seus proprietários naturais. Também os edifícios que
margeiam a rua devem ficar voltados para ela. Não devem nem virar-lhe as
costas, nem oferecer-lhe uma fachada cega. O desenho das quadras de
Palmas privilegia sua área central, de modo que as fachadas das casas se
voltam para o interior das quadras. Dessa maneira, as vias secundárias,
que circundam as quadras, têm como visual a imagem dos muros dos fundos
das edificações. (Fig. 1)
Foto
01: Fachada cega dos muros dos fundos das residências, na quadra 203N.
Autoria: Patrícia Orfila (2009).
Essa situação, criada com base em regras
urbanísticas, contribuiu para uma a paisagem urbana fechada e
repetitiva, além de contribuir para um entorno inseguro. Essa maneira de
edificar motivou ou se conjugou para o que Jacobs pontuou como condição
propícia ‘à falta de vida urbana nas cidades planejadas’.
Terceira ponto: a calçada deve ser ininterrupta,
único meio de aumentar e garantir a multiplicação de olhos, olhares a
“viver” a rua, único meio de seduzir e atrair o encontro de quem seja
incitado a sair, desentocar-se das “cavernas” dos edifícios. Ninguém
gosta de pôr-se à janela e contemplar o vácuo, uma rua vazia. Pelo
contrário, as pessoas sempre podem ser excitadas à contemplação de uma
rua fervendo de bulício, de passos e rumor de gente.
A baixa variedade de usos nas quadras torna a
cidade sem atrativos e pouco eficiente, além da densidade habitacional
que também é baixa na maioria das quadras. Não há definitivamente, por
ora, pelo menos, atrativos à utilização das parcas calçadas de Palmas.
Tais calçadas são insuficientes (Fig. 2) e
subutilizadas, por dois motivos: primeiro porque a cidade cresceu de
forma difusa, espalhada, descentralizada, diferentemente do que
preconizavam os seus planejadores, o que aumentou muito os gastos com
infra-estrutura. ´Cabe dizer, aliás, que o calçamento, em grande parte
da cidade, é inexistente (Fig. 2). Em segundo lugar, há de interferir o
tamanho das quadras, fato que se associa às condições climáticas
inóspitas do cerrado que, na maior parte do ano, gera condições
climáticas que contribuem para difícil movimentação de pedestre em
Palmas.
Foto
02: Calçamento interrompido na Quadra 202N.
Autoria: Patrícia Orfila (2009)
“O dimensionamento básico foi pensado em termos de capacidade de uma dona de casa andar com o filho no colo ou na cesta em um clima inclemente. As quadras são de no máximo 700 m e o comércio intervicinal entre as quadras, supomos que o percurso médio de um pedestre para fazer compras é de cerca de 250 m. Dá pra andar com uma sacola de compras ou uma criança no braço, ou mesmo alcançar o transporte urbano.” (9)
As faixas de pedestres, nas vias secundárias,
estão localizadas na metade das quadras – essa foi a solução encontrada
para a travessia, porém, ‘a lei do menor esforço’, muito conhecida de
quem caminha, prolonga bastante a trajetória do pedestre, mesmo se bem
intencionado a obedecer as regras impostas pelos urbanistas, para outros
menos aptos a seguir tais regras induz à travessia perigosa aumentando o
risco de acidentes.
Todavia, Jacobs alerta que a separação entre
carros e pedestres não é interessante à vivacidade do espaço Assim como
em Brasília, em Palmas o automóvel também é protagonista e tem seu lugar
bem definido dentro do projeto urbano proposto, ocorrendo cisão nítida
entre carros e pessoas, a pessoa e seu urgente trafegar e a bastante
suar para ter acesso ao seu veículo.
O sistema de comunicação visual urbana de Palmas
passou por dois momentos. O primeiro originado do Plano Diretor definia
as avenidas em uma lógica conforme os pontos cardeais, colaterais e
numeração arábica. As quadras obedeciam a uma seqüência lógica, que
iniciava na Praça dos Girassóis, centro do poder estadual, utilizando-se
um grande número de siglas como ARSE, ARNO, ACSO, ACSV, ACSU, etc.,
seguido de dois dígitos numéricos.
“Aqui em Palmas ou a gente se orienta pelo palácio, pela prefeitura, pelos bancos, pelos prédios importantes ou pelos córregos. Eu mesmo moro na Vila União, ela fica logo depois do Córrego Água Fria, se o senhor me perguntar o nome, o número de alguma rua, avenida de Palmas, eu não sei responder, não senhor.” (seu Sebastião da Silva, pioneiro, Palmas, 1993) (10)
O segundo momento de comunicação visual de Palmas
decorreu do Projeto do Sistema de Identificação Urbana de Palmas,
elaborado pelos arquitetos Issao Minami (11) e José Arnaldo Degasperi da
Cunha, em 1997. O plano-piloto da proposta foi feito pelo Grupo Plamarc
de São Paulo e implantado pela Secretaria de Obras da Prefeitura de
Palmas.
O novo plano definiu um conceito cromático para os
quadrantes: nordeste (vermelho), noroeste (laranja), sudeste (azul) e
sudoeste (verde). A avenida Juscelino Kubitschek define os setores norte
e sul. Veja-se quanto a isto:
“Assim, foi mantida a identificação original das avenidas norte-sul com numeração seqüencial par nos quadrantes laranja e verde e, numeração ímpar nos quadrantes vermelho e azul. As avenidas leste-oeste possuem numeração seqüencial par nos quadrantes vermelho e laranja e numeração ímpar nos quadrantes azul e verde. Temos, dessa forma, seqüencialmente as avenidas NS1, NS3, NS5,... NS 15 a leste da avenida Teotônio Segurado e; as avenidas leste-oeste para ao norte da avenida Juscelino Kubitschek e as avenidas leste-oeste ímpares ao sul da avenida Juscelino Kubitschek.” (12)
O novo conceito proposto para a numeração das
quadras situa a Praça dos Girassóis no ponto (0,0) nas ordenadas dos
quadrantes que a definem. A abscissa e a coordenada zero correspondem à
avenida Teotônio Segurado e à avenida Juscelino Kubitschek. (Foto 04)
Foto
04: Totem de indicação de avenida.
Autoria: Patrícia Orfila (2009).
Foto
05: Totem de indicação de quadra de 4,40mx0,80m de largura.
Autoria: Patrícia Orfila (2009).
As quadras (Foto 05) também adotaram uma
codificação alfa-numérica de três a quatro dígitos, para oeste da
avenida Teotônio Segurado (102N, 104N, 106N ao norte, e 102S, 104S, 106S
ao sul da avenida Juscelino Kubitschek) e ímpar à leste (101N, 201N,
..., 1001N, 1101N ao norte da avenida Juscelino Kubitschek e 101S,
201S,...1001S, 1101S ao sul).
“A nomenclatura das avenidas poderia ser mais natural, sendo batizadas com nomes comuns facilitando a localização e memorização. Eu, por exemplo, só sei o nome de uma avenida localizada em um dos lados da quadra onde moro, pois foi nomeada como Juscelino Kubitschek. Siglas seguidas de números se aparentam a dados computacionais ou mecânicos, longe de seres humanos. Aproveito para resgatar as respostas de alguns conhecidos quando são questionados sobre quais avenidas conhecem, eles respondem com as únicas três avenidas do plano diretor que têm algum nome comum, como Palmas Brasil, JK e Teotônio segurado. O restante da sopa de letrinhas e números só contribui para o estresse de se sentir perdido, na falta de um mapa para se locomover em Palmas.” (13)
A mudança no sistema de comunicação visual urbana
gerou uma duplicação de nomenclaturas na memória coletiva da população,
sendo comum a referência aos antigos endereços, além de que, muitas
vezes, as casas possuem os dois endereços na mesma fachada.
Vitalidade Urbana
“As cidades monótonas, inertes, contêm, na verdade, as sementes de sua própria destruição e um pouco mais. Mas as cidades vivas, diversificadas e intensas contêm as sementes de sua própria regeneração, com energia de sobra para os problemas e as necessidades de fora delas.” (14)
A Avenida Juscelino Kubitschek, no centro do plano
urbanístico, concentra a maior parte do comércio e serviço de Palmas.
Durante o horário comercial, há dificuldade para encontrar
estacionamento ao longo dela e a movimentação de pedestres é
considerável. No entanto, durante o período noturno, a rua perde seu uso
comercial, tornando-se pouco movimentada, monótona e até mesmo
perigosa.
‘Vida atrai vida’, ‘o homem procura o homem’,
afirma Jacobs. Essa movimentação de pessoas e riqueza de usos e
diversidade urbana pode ser encontrada em um bairro popular central de
Palmas conhecido como Vila União, cujas origens remontam a um processo
de invasão e à inversão das regras urbanísticas consentidas pelo
Governo, nas antigas quadras AR-NO 31, 32 e 33, atuais 303N, 305N e 307N
(atualmente engloba as quadras 405N,407N e 409N). Hoje é um local
dentro do Plano Urbanístico que apresenta uma movimentação diferenciada
de pessoas, em decorrência dos fatores destacados por Jacobs, como a
diversidade de usos e densidade populacional. A Vila União tem uma
população de aproximadamente 20.967 habitantes. (15)
Cidades planejadas viram surgir às suas margens
cidades informais. O mais notório caso é o de Brasília e suas
cidades-satélites. Taquaralto é um distrito urbano do Município de
Palmas, densamente habitado, que recebeu a maior parte dos migrantes na
época da construção da cidade; cresceu de forma espontânea, passando a
conformar uma paisagem urbana mais orgânica, bem diferente da cidade
planejada. O chamado Setor Sul de Palmas, além de Taquaralto, conjuga
outros núcleos habitacionais que vêm crescendo bastante. São eles:
Aureny I, II e III e IV, Santa Bárbara, Bela Vista, Taquari, Irmã Dulce,
Santa Fé, Morada do Sol, União Sul, dentre outros. O Setor Sul de
Palmas tem uma população de aproximadamente 57.606 mil habitantes (16),
que moram fora do plano urbanístico, uma parcela considerável da
população total do município. Esses dados demonstram um crescimento e
ocupação do espaço bem descentralizado e, no caso do Setor Sul, um
processo de segregação sócio-espacial evidente.
Já o Centro de Palmas tão deserto, triste e pouco
habitado, repleto de vazios e paisagens monótonas, encarcera seus
habitantes entre muros, muros que escondem a possibilidade de uma boa
arquitetura e de uma paisagem urbana mais agregadora e diversificada.
As quadras
Jacobs alerta: a maioria das quadras deve ser
curta; ou seja, as ruas e as oportunidades de virar esquinas devem ser
freqüentes, contrariando o que vem sendo feito pela maioria dos
planejadores. Vizinhanças separadas desarticulam o entrosamento entre os
moradores, quadras muito grandes isolam seus moradores em pequenos
guetos.
“Os projetos residenciais de super-quadras são passíveis de todas as deficiências das quadras longas, freqüentemente de forma ampliada, e isso também ocorre quando são cortados por calçadões e esplanadas e portanto possuem, teoricamente, ruas a intervalos razoáveis, pelas quais as pessoas podem transitar. Essas ruas não têm sentido porque raramente há um motivo plausível para serem usadas por um número razoável de pessoas. Mesmo vistos de fora, levando em conta apenas a mudança de perspectivas visuais quando se vai de um lugar a outro, esses caminhos não têm sentido porque todos os cenários são essencialmente idênticos.” (17)
Conforme foi mencionado, as quadras de Palmas
foram dimensionadas para atingir, no máximo, 700 metros, uma distancia
bastante considerável, sobretudo para uma dona de casa andar com o filho
no colo, de carrinho ou moisés, sob um clima inclemente.
Os vazios urbanos
Na ausência da diversidade urbana, as
pessoas que vivem em grandes comunidades provavelmente se saem melhor
com um carro que a pé. Vazios urbanos insolúveis não são de forma alguma
preferíveis ao trânsito urbano insolúvel. (18)
Os vazios urbanos que hoje representam grande
parte da paisagem de Palmas são reflexo do desenfreado processo de
especulação imobiliária por que a cidade vem passando, desde o início de
sua construção. Os autores do projeto estavam cientes desse problema
desde o início e denunciaram a mudança de regras.
“A idéia de que a ocupação da cidade partisse do centro também foi abandonada, de certa forma, pelo governo. Isso é problemático porque reproduz uma situação maléfica na cidade espontânea: há a necessidade de colocar infra-estrutura em várias direções e a renda da cidade não permite pagar essa expansão ao mesmo tempo para todas elas. O governo está fazendo duas cidades: uma “cidade nova” e uma “nova cidade”. Abrir uma área para segregar o migrante vai ter custos altíssimos, porque na realidade se estão implantando duas cidades diferentes, com água, esgoto, energia, asfalto, escola, hospital etc. quando se poderia estar gastando numa só.” (19)
A mudança de regras suscitou o surgimento de um tipo de crescimento sprawl,
maléfico para os gastos públicos, dispendioso e monótono para os
habitantes, os principais prejudicados com o excesso de vazios urbanos à
espera de valorização imobiliária. Mais uma vez os autores do projeto
confirmam esse processo:
“A primeira regra rompida foi no início da implantação e crescimento da cidade. A ocupação, que deveria começar na parte central, de acordo com a lógica que comentávamos a pouco, não foi obedecida. Por razões que para nós não são claras, o governo resolveu abrir frentes de ocupação de maneira diferente daquela planejada, doando lotes em áreas afastadas da parte central da cidade para migrantes. Na cabeça deles parece que não entrou o conceito de que as diversas classes sociais eram indistintas para efeito do plano: você tem que abrigar todas. O governo deu terreno de graça para a população pobre: criou, a cerca de 20km de Palmas, próxima a uma localidade chamada Taquaralto – não era mais um pequeno aglomerado de casas -, a Vila Aureny; depois a Vila Aurenys II, III.” (20)
Os vazios urbanos contribuem para a falta de
vitalidade urbana, tomando os caminhos morosos e repetitivos, devido à
ausência de construções e repetição de paisagem verde ou descampada, o
oposto do que acontece nas cidades mais densas e com diversidade de
usos.
A cidade murada
Os condomínios fechados surgem de forma intensa,
em Palmas, bastante procurados pelas classes média e alta. Infelizmente,
esse não representa um fenômeno só das cidades planejadas, mas um
reflexo da realidade sócio-econômica brasileira. A forma como têm sido
construídos em Palmas contribuem, sobremaneira, para o aspecto de cidade
murada. (Fig. 6 e 7)
Foto 06: Condomínio residencial na
Quadra 205N.
Foto 07: Muro de condomínio
residencial na Quadra 205N e ausência de calçamento no entorno.
Autoria: Patrícia Orfila (2009).
As praças públicas
“Para que fins reclamamos mais espaços livres? Para construir sinistros vazios entre os edifícios ou para o uso e prazer dos habitantes? Mas estes não utilizam o espaço livre simplesmente porque ele está ali, ou porque assim o querem os urbanistas.” (21)
As praças urbanas de Palmas são espaços verdes,
urbanizados e pouquíssimo freqüentados pela população; são espaços
estéreis e caros para a cidade; a Praça dos Girassóis é exemplo
emblemático, mas podemos citar também a Praça da Árvore, na Quadra 204N,
espaço verde dotado de infra-estrutura, com brinquedos infantis, mas
que quase nunca são utilizados, a não ser, vez ou outra, por casais de
namorados. (Fig. 8 e 9)
Foto
08: ‘Praça da Árvore’ não utilizada, na Quadra 204N.
Autoria:
Patrícia Orfila (2009).
Palmas possui dois nobres atrativos naturais, que
ladeiam o plano urbanístico, impossíveis de esquecer, pois contribuem
para o deleite visual cotidiano de seus habitantes. São eles a serra e o
lago. (Fig. 10 e 11)
Foto
10: Paisagem da serra do Lajeado, vista da quadra 108 Norte.
Autoria:
Patrícia Orfila (2009).
A cidade foi idealizada, acertadamente, de forma
que privilegiasse duas paisagens muito marcantes, de um lado a serra do
Carmo e do Lajeado e do outro o lago artificial formado pelo curso do
rio Tocantins que alimenta a barragem da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo
Magalhães. A serra e o lago foram os elementos definidores do sítio
urbano, preservando-se sua visão de qualquer parte da cidade.
Inferências
A gestão pública desvirtuou o plano original,
alegam os urbanistas de Palmas, quando procuram explicar a origem de
determinados problemas da cidade. Para os seguidores da doutrina
modernista, as cidades são planejadas pensando-se nelas para daqui a
‘cem anos’. Assim estimam seu crescimento, destinando-lhes áreas de
expansão e limites a seu crescimento vertical e horizontal. Desse modo,
estabelecem também projeções populacionais. Mas, ante problemas urbanos
complexos, o discurso geralmente usado é: tratar-se de uma cidade ainda
não consolidada.
É certo que o clima foi um forte condicionante do
planejamento de Palmas. Não pode, entretanto, ser o maior culpado pela
ausência de vitalidade da cidade, causada também pelo seu desenho urbano
spraw, dificultando as atividades básicas do dia-a-dia, tanto do
pedestre, como do trabalhar ou, simplesmente, daquele que procurar às
fruições do flâneur, do que saí a apenas curtir a passear pela cidade.
A revisão do Plano Diretor Participativo de
Palmas, realizada desde 2006 e atualmente em tramitação na Câmara dos
Deputados, incluiu correções para alguns dos problemas urbanos, como as
práticas especulativas predatórias, tudo isso sob o apoio do Estatuto da
Cidade, no que tange à implantação de ZEIS, IPTU progressivo e outros.
A concentração urbana é desejável e a recusa
passional dos urbanistas contribuiu para ‘matar intelectualmente o
urbanismo’, esse um dos grandes dilemas que esta matéria enfrenta
atualmente. ‘A cidade não pode ser tratada como uma obra de arte’,
reforça Jacobs. As cidades têm sua natureza própria e uma lógica
complexa, que depende da fusão de diversos fatores, como a alta
densidade urbana, o intenso uso das vias e calçadas públicas, a mistura
de usos, quadras curtas e até mesmo lutar pela preservação da memória,
isto é, dos passos iniciais e dos prédios mais antigos por sorte
existentes. Essa diversidade é geradora de intensidade, de pulsação
vital, de vitalidade, enfim.
notas
1
Jane Jacobs (1916-2006) foi uma escritora norte-americana naturalizada canadense, ativista política, jornalista e economista autodidata, colaboradora e mais tarde editora associada da revista Architectural Forum.
Jane Jacobs (1916-2006) foi uma escritora norte-americana naturalizada canadense, ativista política, jornalista e economista autodidata, colaboradora e mais tarde editora associada da revista Architectural Forum.
2
Arquiteto, urbanista e pintor francês de origem suíça, responsável por trazer ao Brasil os princípios que nortearam o movimento moderno na arquitetura e no urbanismo, considerado um dos mais importantes arquitetos do século XX. A influência de Le Corbusier na formação do pensamento urbano-arquitetônico moderno foi muito grande, estendendo-se da Europa ao Brasil e ao Japão, marcando profundamente arquitetos como Niemeyer, Reidy ou Lúcio Costa, em realizações como Brasília. (Lamas, 2000, p. 356).
Arquiteto, urbanista e pintor francês de origem suíça, responsável por trazer ao Brasil os princípios que nortearam o movimento moderno na arquitetura e no urbanismo, considerado um dos mais importantes arquitetos do século XX. A influência de Le Corbusier na formação do pensamento urbano-arquitetônico moderno foi muito grande, estendendo-se da Europa ao Brasil e ao Japão, marcando profundamente arquitetos como Niemeyer, Reidy ou Lúcio Costa, em realizações como Brasília. (Lamas, 2000, p. 356).
3
HAROUEL, Jean-Louis. História do Urbanismo. Campinas, Papirus, 1990, p. 103.
HAROUEL, Jean-Louis. História do Urbanismo. Campinas, Papirus, 1990, p. 103.
4
LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. VII.
LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. VII.
5
ALEXANDER, Christopher. “Uma cidade não é uma árvore”. Disponível em <www.vivercidades.org.br/publique222/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1123&sid=21>. Acesso em 10 de fevereiro de 2009.
ALEXANDER, Christopher. “Uma cidade não é uma árvore”. Disponível em <www.vivercidades.org.br/publique222/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1123&sid=21>. Acesso em 10 de fevereiro de 2009.
6
FERRAZ, Silvio. “A última fronteira – Setenta mil brasileiros vivem a aventura de Palmas, a capital a poeira e das oportunidades” Revista Veja, 04 de agosto 1993, p. 46-49.
FERRAZ, Silvio. “A última fronteira – Setenta mil brasileiros vivem a aventura de Palmas, a capital a poeira e das oportunidades” Revista Veja, 04 de agosto 1993, p. 46-49.
7
IBGE. “Cidades”. Disponível em: <www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1>. Acesso em: 08 fevereiro 2009.
IBGE. “Cidades”. Disponível em: <www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1>. Acesso em: 08 fevereiro 2009.
8
SEGAWA, Hugo. “Palmas, cidade nova ou apenas uma nova cidade?” Projeto, s. l., n. 146, p. 94-109, out. 1991.
SEGAWA, Hugo. “Palmas, cidade nova ou apenas uma nova cidade?” Projeto, s. l., n. 146, p. 94-109, out. 1991.
9
LIRA, Elizeu Ribeiro. A Gênese de Palmas. Porto Nacional, Mimeo, Unesp, 1995, p.272.
LIRA, Elizeu Ribeiro. A Gênese de Palmas. Porto Nacional, Mimeo, Unesp, 1995, p.272.
10
MINAMI, Issao; CUNHA, José Arnaldo D. Um sistema de comunicação visual urbana para a Cidade de Palmas no Estado de Tocantins. In: Sinopses 26, Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, dez., 1996.
MINAMI, Issao; CUNHA, José Arnaldo D. Um sistema de comunicação visual urbana para a Cidade de Palmas no Estado de Tocantins. In: Sinopses 26, Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, dez., 1996.
11
Rafael Lima de Carvalho é professor da Universidade Federal do Tocantins e morador de Palmas desde 2000, (entrevista realizada dia 16/02/2009).
Rafael Lima de Carvalho é professor da Universidade Federal do Tocantins e morador de Palmas desde 2000, (entrevista realizada dia 16/02/2009).
12
JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 499.
JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 499.
13
Dados da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação. População, Área e Densidade Populacional por quadras. Cadastro Técnico Multifinalitário do ano de 2003.
Dados da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação. População, Área e Densidade Populacional por quadras. Cadastro Técnico Multifinalitário do ano de 2003.
14
Idem.
Idem.
15
JACOBS, Jane. Op. cit , p. 205.
JACOBS, Jane. Op. cit , p. 205.
16
Idem, p. 388.
Idem, p. 388.
17
SEGAWA, Hugo. “Palmas, cidade nova ou apenas uma nova cidade?” In: Projeto, s. l., n. 146, p. 94-109, out. 1991.
SEGAWA, Hugo. “Palmas, cidade nova ou apenas uma nova cidade?” In: Projeto, s. l., n. 146, p. 94-109, out. 1991.
18
JACOBS, Jane. Op. cit , p. 299.
JACOBS, Jane. Op. cit , p. 299.
Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.117/3379